O fenómeno da população em situação de sem abrigo, encontra-se em nítido crescimento nos grandes centros urbanos, com profundas implicações sociais e psicológicas para quem vive nesta condição e é alvo de estigma. A investigação neste domínio é ainda bastante escassa e torna-se premente estudar e compreender melhor esta realidade tão complexa para que se possa melhor intervir, tendo como consequência uma melhor resposta adaptada a cada situação.
No decorrer da nossa intervenção junto da população em situação de sem abrigo, temos identificado percursos de vida e encontrado eventualmente regularidades ou padrões de comportamento nas suas trajectórias que nos permitem compreender como se chega à derradeira desumanização da vida na rua e que potencial de reinserção ainda poderá existir de acordo com cada realidade. Tentamos explorar o caminho a seguir para uma reabilitação efectiva e consistente de acordo com o “timing” de cada um, restituindo-lhe um sentido de vida, dignidade e autonomia.
Ainda que existindo alguns pontos chave na compreensão dos percursos de vida da população em situação de sem abrigo - as rupturas familiares e conjugais, adições, doença mental e carência económica; A entrada em situação de sem abrigo é geralmente uma experiência traumatizante, verificando-se um choque inicial com esta realidade (Goodman, Save Harvey, 1991) que pode ter maior ou menor repercussão consoante a resistência da estrutura psicológica preexistente e a sua maior ou menor vulnerabilidade, condicionando o ritmo de degradação do indivíduo. No entanto, existe um toque de alerta interno a partir do qual surge um comportamento pró-activo na procura de alternativas de saída da situação de sem abrigo, que é encarada como uma situação temporária ou transitória. Neste estádio, a possibilidade de sucesso é bastante significativa, se o modelo de inserção proposto for adequado e atempado. Porém, outras situações existem em que a predisposição para a inserção, devido sobretudo ao insucesso de tentativas anteriores com a frustração decorrente de sucessivas recaídas (Pereira et al; 2000), dão lugar a uma situação de impotência aprendida, que com o passar do tempo dá lugar ao desânimo e à acomodação. Geralmente, é sinónimo do desgaste geral da estrutura psicológica, da motivação e das competências cognitivas e relacionais. Como o grau de disfuncionalidade provocado pela desorganização biopsicossocial, é bastante acentuado, a probabilidade de insucesso.
A doença mental é, sem dúvida, um factor de vulnerabilidade que pode conduzir à situação de sem abrigo, na medida em que a funcionalidade e autonomia dos sujeitos ficam altamente afectadas, agravando-se exponencialmente este risco para os doentes com esquizofrenia (Olfson et al; 1999, cit in Bento & Barreto, 2002). A sintomatologia delirante persecutória, as alucinações auditivas, os comportamentos bizarros e a negligência com a higiene pessoal impedem o estabelecimento de relacionamentos interpessoais normais podendo conduzir à alienação e ao isolamento ( Mojtabai, 2005). As mais comuns entre a população sem abrigo são a esquizofrenia, perturbações delirantes persistentes, depressão, toxicodependência, alcoolismo, duplo diagnóstico e perturbações da personalidade (Fischer & Breakey, 1991; McQuistion et al, 2003; Munoz et al, 1996).
Para além da realidade visível e externa daqueles que se encontram em situação de sem abrigo, é para nós fundamental perceber as suas realidades mais íntimas, como vivem, pensam e sentem o desencontro com o outro, e em alguns casos consigo mesmos (Pais, 2006, p.34). Continuando a acreditar em cada história de vida, na intervenção individualizada, respeitando timings e contextos com uma perspectiva tão flexível quanto rigorosa e técnica, a equipa tem por base de intervenção a construção da relação, da empatia e confiança.